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{17.1.03}

 
não me perguntem o porquê, eu não saberia responder, mas tenho pensado nesta música:

"When I get older losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings, bottle of wine?

If I'd been out till quarter to three
Would you lock the door?
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?

You'll be older too
And if you say the word
I could stay with you

I could be handy mending a fuse
When your lights have gone
You can knit a sweater by the fireside
Sunday morning go for a ride

Doing the garden, digging the weeds
Who could ask for more
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?

Every summer we can rent a cottage
In the Isle of Wight if it's not too dear
We shall scrimp and save (we shall scrimp and save)
Grandchildren on your knee Vera, Chuck and Dave

Send me a postcard, drop me a line
Stating point of view
Indicate precisely what you mean to say
Yours sincerely wasting away

Give me your answer, fill in a form
Mine for evermore
Oh will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?"


posted by Senhor K. 09:34


{14.1.03}

 
ficção original fresquinha da fábrica. Peter S. Krause de volta ao universo Cyber

MISERICÓRDIA


Um sujeito toca Blowing in the wind numa gaita de boca. O saguão da Usina do Gasômetro virou uma espécie de hospital de guerra. As pessoas suam, na folhinha, é quase Natal. As enfermeiras são quase crianças, adolescentes, usam uniformes brancos já manchados de muito sangue. Sobre uma mesa coberta de um lençol branco feito de retalhos brancos de lençóis brancos há muito castigados de sangues e bílis alheias, uma mulher é examinada pelo olho biônico do doutor. Ele murmura qualquer coisa sobre germes, infecção, pus e impunidade. Ela olha a própria barriga e, neste movimento sente os pontos a romper e enxerga o enxarque rubro na bandagem nova. O braço forte, ferido e enluvado a empurra com força para baixo enquanto o doutor lembra Eu falei pra não te mexer, não falei? Ela lembra, lembra também do marido, do ataque, do filho não nascido que agora não vem mais, do pão e da água roubados. Ao lado deles, uma das enfermeiras-criança cobre um corpo até o rosto, Outro que dorme para não acordar mais. A paciente fechou os olhos com força, o médico a olhou com complacência, viu seu sofrimento, sorriu, deu-lhe um golpe na nuca. Silêncio.

A mulher acordou quando o sol já não mais castigava as janelas de vidro. Algumas enfermeiras e o médico grelhavam um par de morcegos. Uma delas misturava o sangue dos animais à água e açúcar e depois servia em copos. Ela chamou o doutor que lhe avisou Podes levantarm, suturamos a fogo. Ela se sabia estéril, mas a cicatriz queimada era melhor que os pontos que abriam e a lembrança do fruto do amor perdido. Ainda bem que José já havia morrido quando os canibais comeram nosso filho, murmurou baixinho. Ela tinha quase completado o termo quando foram surpreendidos na esquina democrática. Estavam a caminho do hospital para tentar ter a criança com um pouco de segurança. Ela ia sobre um carrinho de supermecados, junto com um pão de forma e um garrafão de água. Foram levados para as ruínas de um velho sobrado, José foi morto tentando resistir, a criança fora arrancada em uma cesariana precária. Cortaram o cordão umbelical com um facão mateiro e largaram a criança natimorta direto sobre as brasas. Perdera a consciência antes de começarem a cortar seu pequeno filhote, comer seu corpo e beber seu sangue. Ainda assim a fome e a sede falaram mais alto e ela decidiu aceitar uma asa grelhada e um gole de sangue doce. Ela pergunta se não precisam de ajuda no hospital, Toda a minha família se foi e eu sinto uma vontade tão grande de ajudar. O médico limpa o suor, nada diz, morde a perna de morcego e toma um grande gole de sangue doce, Come e dorme, se amanhã tu ainda te sentir assim, a gente conversa de novo. Ela acenou concordando, ele esvaziou uma cápsula dentro do copo dela, sorriu, é só analgésico. Ela confia nele, não há razão para não confiar, a dor é tanta.

Ela acordou pela manhã tossindo uma mancha grossa de sangue no próprio peito. Parecia um coração, mas era só uma pequena hemorragia. Limparam-na, despiram-na, prepararam-na para cirurgia. O doutor murmurou, Ainda é muito cedo para tu começares a ajudar as gentes por aqui. Ela sorriu de simpatia, depois riu do éter e finalmente desmaiou.

Quando despertou ainda lhe costuravam o peito. Observou-se no espelho acima, a confusão sobrepondo à dor, agora possuía duas cicatrizes no ventre e uma no centro do peito. Quis chorar mas viu-se seca de lágrimas. Sentiu o pulso metálico e controlado de seu novo coração. O velho não aguentara à perda de sangue e ao stress dos últimos dias, comentou o médico com seu olho de vidro. Ela suspirou. Ele comentou que as emoções ficavam mesmo perto do hipotálamo, que o coração era meramente um símbolo vazio dos poetas do passado, que os novos não eram alvo das bactérias e dos vírus, que era mais higiênico e confiável e que … Ela já não mais prestava atenção. Aquele X no ventre sempre a lembraria de não mais poder conceber, a linha reta no peito apontava para o centro dele, aquilo parecia familiar, mas nunca estudara muita história e nunca lembraria qualquer coisa. Voltou a si quando lhe ofereceram um copo de sangue doce, um anti-estamínico e um calmante. Aceitou, tomou, sorriu, cambaleou até a escada e sentou nos degraus olhando para baixo. No saguão, uma menina-enfermeira puxava o lençol sobre um rosto e murmurava, Mais um que dorme para não acordar mais. Ficou ali olhando aquelas crianças, provavelmente todas órfãs, cobrindo os rostos de cadáveres que nunca serão seus pais. Pensou que teve bonecas, jogou videogames e até subiu em uma árvore uma vez. Essas crianças nunca correm, pensou, algumas nem podem. Sentiu a febre começando a subir. Suou, pediu um agasalho. No sol da manhã de dezembro, trinta e dois graus. Deram-lhe um lençol azul meio roto, ela enfiou os dedos por um par de buracos, cobriu a cabeça e tentou esconder as bandagens o melhor que pode. Desceu as escadas com calma e cuidado e um pouco de medo. Juntou o grupo de enfermeiras-meninas e perguntou se elas já haviam comido bolo. Não tinham. Retirou-se, deitou-se, dormiu.

Acordou só na manhã seguinte. Ou na seguinte ainda, não sabia bem. Dirigiu-se para a cozinh sem dirigir palavra a ninguém. Seu coração metálico queria acelerar. Encontrou farinha, açucar, um bolor medicinal que poderia servir de fermento, tirou de sua bagagem uma pequena barra de chocolate mordida que os saqueadores não haviam visto, vasculhou, cavocou, encontrou um pedaço de manteiga. Misturou tudo com as mãos até que ficou uma espécie de massa, colocou num prato fundo e largou no meio do carvão. Abatumou. Abatumou mas era um bolo de chocolate como aquelas crianças jamais haviam visto. Dividiu, sobrou até um pedaço para si e um para o doutor ciborgue. Comeram empurrando com sangue doce de cachorro. Perguntou o nome de cada uma, estavam todas ali, Mariana, Carolina, Viviane, Luísa e Luzia, Simone, Márcia, Susana, Clotilde, Débora, Ismália, Cláudia, Andréia, Ana e Ana Paula, Fabiana, Fernanda e Fabíola, Patrícia, Jimena, Sheila, Letícia e o Doutor João Batista. Mariana foi quem perguntou, E qual o teu nome tia? Ainda enrolada no lençol azul e febril, ela sorriu e suspirou, Maria. Caiu de costas e faleceu naquele instante rejeitando o órgão biônico que le havia prolongado a vida de sofrimento até aquele dia. Na folhinha, 25 de dezembro, 2112.



posted by Senhor K. 04:15

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