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{24.12.03}

 
Um poema do Carlos Drummond de Andrade que eu transcrevi do livro Antologia Poética e que me inspirou um haicai


RESÍDUO


De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
– vazio – de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil ...
De tudo dica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo ficou um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas, de tudo, terrível, fica um pouco.
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pás já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

posted by Senhor K. 03:24


{25.11.03}

 
mais atualizaç?es de coisas que escrevi durante a estada na França ... agora as coisas em versos


As medidas imprecisas

haicai 1

O amor que sinto é
t?o grande e eu t?o pequeno
que me espalho em muitos

haicai 2
Por todos os lados
hei de esparramar migalhas
de um p?o destroçado

haicai 3
Depois dos sudores
mas ainda antes dos suspiros
habita a esperança


diversos

haicai
Uno mira al cielo
por detr?s de las gaviotas
hasta su reflejo


haicai
Os pequenos sonhos
de prata e ventos dourados
somam-se à nossa alma


haicai Claddagh
The heart in my hands
O offer to thee with the crown
of my own free will.


Sobre o Atlântico, 4 de Março de 2003
Boulogne, 28 de Fevereiro de 2003

retornar para o Blógui do Peter
posted by Senhor K. 00:30


{16.6.03}

 
alguém na PUC desaprendeu a ler e está confundindo Julho com Junho
...
e não sou eu
posted by Senhor K. 01:16


{10.6.03}

 
faz tempo, então: mais uma do velho Leonard ...

ONE OF US CANNOT BE WRONG
(Leonard Cohen)


I lit a thin green candle, to make you jealous of me.
But the room just filled up with mosquitos,
they heard that my body was free.
Then I took the dust of a long sleepless night
and I put it in your little shoe.
And then I confess that I tortured the dress
that you wore for the world to look through.

I showed my heart to the doctor: he said I just have to quit.
Then he wrote himself a prescription,
and your name was mentioned in it!
Then he locked himself in a library shelf
with the details of our honeymoon,
and I hear from the nurse that he's gotten much worse
and his practice is all in a ruin.

I heard of a saint who had loved you,
so I studied all night in his school.
He taught that the duty of lovers
is to tarnish the golden rule.
And just when I was sure that his teachings were pure
he drowned himself in the pool.
His body is gone but back here on the lawn
his spirit continues to drool.

An Eskimo showed me a movie
he'd recently taken of you:
the poor man could hardly stop shivering,
his lips and his fingers were blue.
I suppose that he froze when the wind took your clothes
and I guess he just never got warm.
But you stand there so nice, in your blizzard of ice,
oh please let me come into the storm.

posted by Senhor K. 09:32


{17.1.03}

 
não me perguntem o porquê, eu não saberia responder, mas tenho pensado nesta música:

"When I get older losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings, bottle of wine?

If I'd been out till quarter to three
Would you lock the door?
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?

You'll be older too
And if you say the word
I could stay with you

I could be handy mending a fuse
When your lights have gone
You can knit a sweater by the fireside
Sunday morning go for a ride

Doing the garden, digging the weeds
Who could ask for more
Will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?

Every summer we can rent a cottage
In the Isle of Wight if it's not too dear
We shall scrimp and save (we shall scrimp and save)
Grandchildren on your knee Vera, Chuck and Dave

Send me a postcard, drop me a line
Stating point of view
Indicate precisely what you mean to say
Yours sincerely wasting away

Give me your answer, fill in a form
Mine for evermore
Oh will you still need me, will you still feed me
When I'm sixty-four?"


posted by Senhor K. 09:34


{14.1.03}

 
ficção original fresquinha da fábrica. Peter S. Krause de volta ao universo Cyber

MISERICÓRDIA


Um sujeito toca Blowing in the wind numa gaita de boca. O saguão da Usina do Gasômetro virou uma espécie de hospital de guerra. As pessoas suam, na folhinha, é quase Natal. As enfermeiras são quase crianças, adolescentes, usam uniformes brancos já manchados de muito sangue. Sobre uma mesa coberta de um lençol branco feito de retalhos brancos de lençóis brancos há muito castigados de sangues e bílis alheias, uma mulher é examinada pelo olho biônico do doutor. Ele murmura qualquer coisa sobre germes, infecção, pus e impunidade. Ela olha a própria barriga e, neste movimento sente os pontos a romper e enxerga o enxarque rubro na bandagem nova. O braço forte, ferido e enluvado a empurra com força para baixo enquanto o doutor lembra Eu falei pra não te mexer, não falei? Ela lembra, lembra também do marido, do ataque, do filho não nascido que agora não vem mais, do pão e da água roubados. Ao lado deles, uma das enfermeiras-criança cobre um corpo até o rosto, Outro que dorme para não acordar mais. A paciente fechou os olhos com força, o médico a olhou com complacência, viu seu sofrimento, sorriu, deu-lhe um golpe na nuca. Silêncio.

A mulher acordou quando o sol já não mais castigava as janelas de vidro. Algumas enfermeiras e o médico grelhavam um par de morcegos. Uma delas misturava o sangue dos animais à água e açúcar e depois servia em copos. Ela chamou o doutor que lhe avisou Podes levantarm, suturamos a fogo. Ela se sabia estéril, mas a cicatriz queimada era melhor que os pontos que abriam e a lembrança do fruto do amor perdido. Ainda bem que José já havia morrido quando os canibais comeram nosso filho, murmurou baixinho. Ela tinha quase completado o termo quando foram surpreendidos na esquina democrática. Estavam a caminho do hospital para tentar ter a criança com um pouco de segurança. Ela ia sobre um carrinho de supermecados, junto com um pão de forma e um garrafão de água. Foram levados para as ruínas de um velho sobrado, José foi morto tentando resistir, a criança fora arrancada em uma cesariana precária. Cortaram o cordão umbelical com um facão mateiro e largaram a criança natimorta direto sobre as brasas. Perdera a consciência antes de começarem a cortar seu pequeno filhote, comer seu corpo e beber seu sangue. Ainda assim a fome e a sede falaram mais alto e ela decidiu aceitar uma asa grelhada e um gole de sangue doce. Ela pergunta se não precisam de ajuda no hospital, Toda a minha família se foi e eu sinto uma vontade tão grande de ajudar. O médico limpa o suor, nada diz, morde a perna de morcego e toma um grande gole de sangue doce, Come e dorme, se amanhã tu ainda te sentir assim, a gente conversa de novo. Ela acenou concordando, ele esvaziou uma cápsula dentro do copo dela, sorriu, é só analgésico. Ela confia nele, não há razão para não confiar, a dor é tanta.

Ela acordou pela manhã tossindo uma mancha grossa de sangue no próprio peito. Parecia um coração, mas era só uma pequena hemorragia. Limparam-na, despiram-na, prepararam-na para cirurgia. O doutor murmurou, Ainda é muito cedo para tu começares a ajudar as gentes por aqui. Ela sorriu de simpatia, depois riu do éter e finalmente desmaiou.

Quando despertou ainda lhe costuravam o peito. Observou-se no espelho acima, a confusão sobrepondo à dor, agora possuía duas cicatrizes no ventre e uma no centro do peito. Quis chorar mas viu-se seca de lágrimas. Sentiu o pulso metálico e controlado de seu novo coração. O velho não aguentara à perda de sangue e ao stress dos últimos dias, comentou o médico com seu olho de vidro. Ela suspirou. Ele comentou que as emoções ficavam mesmo perto do hipotálamo, que o coração era meramente um símbolo vazio dos poetas do passado, que os novos não eram alvo das bactérias e dos vírus, que era mais higiênico e confiável e que … Ela já não mais prestava atenção. Aquele X no ventre sempre a lembraria de não mais poder conceber, a linha reta no peito apontava para o centro dele, aquilo parecia familiar, mas nunca estudara muita história e nunca lembraria qualquer coisa. Voltou a si quando lhe ofereceram um copo de sangue doce, um anti-estamínico e um calmante. Aceitou, tomou, sorriu, cambaleou até a escada e sentou nos degraus olhando para baixo. No saguão, uma menina-enfermeira puxava o lençol sobre um rosto e murmurava, Mais um que dorme para não acordar mais. Ficou ali olhando aquelas crianças, provavelmente todas órfãs, cobrindo os rostos de cadáveres que nunca serão seus pais. Pensou que teve bonecas, jogou videogames e até subiu em uma árvore uma vez. Essas crianças nunca correm, pensou, algumas nem podem. Sentiu a febre começando a subir. Suou, pediu um agasalho. No sol da manhã de dezembro, trinta e dois graus. Deram-lhe um lençol azul meio roto, ela enfiou os dedos por um par de buracos, cobriu a cabeça e tentou esconder as bandagens o melhor que pode. Desceu as escadas com calma e cuidado e um pouco de medo. Juntou o grupo de enfermeiras-meninas e perguntou se elas já haviam comido bolo. Não tinham. Retirou-se, deitou-se, dormiu.

Acordou só na manhã seguinte. Ou na seguinte ainda, não sabia bem. Dirigiu-se para a cozinh sem dirigir palavra a ninguém. Seu coração metálico queria acelerar. Encontrou farinha, açucar, um bolor medicinal que poderia servir de fermento, tirou de sua bagagem uma pequena barra de chocolate mordida que os saqueadores não haviam visto, vasculhou, cavocou, encontrou um pedaço de manteiga. Misturou tudo com as mãos até que ficou uma espécie de massa, colocou num prato fundo e largou no meio do carvão. Abatumou. Abatumou mas era um bolo de chocolate como aquelas crianças jamais haviam visto. Dividiu, sobrou até um pedaço para si e um para o doutor ciborgue. Comeram empurrando com sangue doce de cachorro. Perguntou o nome de cada uma, estavam todas ali, Mariana, Carolina, Viviane, Luísa e Luzia, Simone, Márcia, Susana, Clotilde, Débora, Ismália, Cláudia, Andréia, Ana e Ana Paula, Fabiana, Fernanda e Fabíola, Patrícia, Jimena, Sheila, Letícia e o Doutor João Batista. Mariana foi quem perguntou, E qual o teu nome tia? Ainda enrolada no lençol azul e febril, ela sorriu e suspirou, Maria. Caiu de costas e faleceu naquele instante rejeitando o órgão biônico que le havia prolongado a vida de sofrimento até aquele dia. Na folhinha, 25 de dezembro, 2112.



posted by Senhor K. 04:15


{10.12.02}

 
faz tempo que não atualizo o bird on a wire. mas esses links do Lou Reed estavam há tempos para ser colocados. O site brasileiro tem todas as letras e ainda tablaturas, um achado pra qualquer um que queira assassinar uma das obras deste velho mestre que faz 61 aninhos em 2 de março de 2003.
posted by Senhor K. 10:23

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